* Pesquisa realizada como aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, com financiamento da CAPES, pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, e da Fapesb, pelo Programa de Bolsa de Doutorado.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

SURDO, SIM. MUDO, NÃO!

Há algum tempo que o termo surdo-mudo já não figura mais no vocabulário dos surdos e profissionais que trabalham com a surdez, nos nomes das instituições ou em documentos oficiais. Mesmo assim, ele ainda aparece na linguagem corrente e é empregado por muitas pessoas pra se referir aos surdos. Se você é uma dessas pessoas, veja aqui três razões pelas quais não devemos chamar os surdos de mudos.

A primeira delas se sustenta no aspecto orgânico, ou, anatomo-fisiológico. O surdo, na maioria dos casos, não tem nenhum problema no aparelho fonoarticulatório ou a nível cerebral que o impeça de falar.  O que acontece é que a fala se aprende, salvo por meio de tratamento específico, na medida em que vamos escutando as pessoas falando ao nosso redor. Como, pela falta da escuta, o surdo não aprende a falar de forma espontânea, por muito tempo acreditou-se que eles fossem também mudos, daí a designação surdo-mudo que persiste até hoje em muitos idiomas. Na verdade, mesmo em algumas línguas de sinais, o sinal de surdo ainda remonta a esse antigo termo. É o caso da LIBRAS, por exemplo, em que o sinal de surdo consiste em colocar o dedo indicador na orelha e depois na boca, fazendo referência tanto ao não ouvir quanto ao não falar.

Fonte: arquivo pessoal


A segunda razão se liga à grande variedade de condições que são agrupadas sobre o termo surdo. Muitos surdos perdem a audição após a aquisição da linguagem oral, são os surdos pós-linguais. Para eles, de modo geral, a língua oral continua sendo sua principal forma de expressão. Além disso, muitos surdos, mesmo pré-linguais, aprendem a falar por meio de tratamento fonoaudiológico e com a ajuda de aparelhos auditivos e implantes cocleares. Portanto, os surdos que falam são cada vez mais numerosos.

A última razão que apresento, embora essas três não sejam as únicas, se relaciona ao sentido simbólico da mudez, ou seja, à relação entre a designação mudo e a ideia de não expressão. Também nesse sentido, os surdos não são mudos. Os surdos se expressam e o fazem de várias maneiras, seja por meio da língua sinais, seja falando, seja pela escrita, pela arte, enfim, pelas diversas linguagens das quais dispomos. Há ainda surdos que, mesmo podendo, decidem não falar para manifestar seu desacordo com a oralização, mas mesmo isso não faz deles mudos, já que a própria recusa em falar, nesse caso, é uma expressão em si mesma.

Embora mudar os hábitos de linguagem seja difícil, abandonar essa antiga designação, surdo-mudo, ou ainda termos como mudo ou mudinho, demonstra sensibilidade e respeito às reivindicações dos surdos e atenção às transformações em curso na nossa sociedade.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

INSTITUTO NACIONAL DE JOVENS SURDOS DE PARIS: UM POUCO DE HISTÓRIA

O Instituto Nacional de Jovens Surdos de Paris, INJS, fundado em 1791, é a mais antiga escola pública e laica para surdos do mundo. A escola funciona nas mesmas instalações desde 1794, um lindo e amplo edifício com um enorme jardim. O instituto é fruto do trabalho do abade Charles-Michel de l'Epée, conhecido como Abbé de l’Epée (1712-1789).

Entre os séculos XVI e XVIII a educação de surdos no ocidente era restrita aos filhos de famílias ricas e tinha como principal objetivo ensinar-lhes a falar. Conta-se que, em 1760, o Abbé de l’Epée conheceu duas irmãs surdas que se comunicavam por meio de sinais e, desde então, passou a se dedicar ao desenvolvimento de uma pedagogia de ensino da linguagem (gestual e escrita), por meio de sinais.

Para combater a ideia corrente de que os surdos tinham uma inteligência limitada e um acesso restrito à linguagem, o Abbé de l’Epée organizava apresentações em que as pessoas podiam fazer perguntas aos surdos, sobre assuntos diversos, para comprovar seus conhecimentos. Com essas reuniões, o abade conseguia apoio para sua causa: a educação dos surdos de todas as condições sociais. O INJS foi fundado dois anos após sua morte e seu primeiro diretor foi Sicard, formado instrutor de surdos pelo Abeé de l’Epée e fundador do Instituto de Surdos de Bordeaux. Os alunos e professores do INJS influenciaram a educação de surdos em todo o mundo.

Em 1817, Laurent Clerc, aluno do instituto, ajudou Thomas Gallaudet na fundação do American Asylum for the Deaf, em Hartford, nos Estados Unidos, a primeira escola para surdos daquele país. Esta instituição certamente influenciou a criação, em 1864, da Gallaudet University, primeira e, por muito tempo, única instituição de ensino superior para surdos. Seu primeiro diretor foi Edward Gallaudet, filho de Thomas Gallaudet e Sophia Fowler Gallaudet. Sophia nasceu surda e, com ela, Edward Gallaudet aprendeu a língua de sinais como primeira língua. Ela teve um papel importante na consolidação da educação de surdos nos Estados Unidos.

No Brasil, em 1857, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos foi fundado, no Rio de janeiro, com ajuda de Edouard Huet, educador surdo francês também ligado ao INJS e que há alguns anos fundara na cidade o Collégio Nacional para Surdos-Mudos. Em 1957, o Instituto teve seu nome alterado para Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), como é chamado até os dias de hoje. Por essa mesma razão, é possível reconhecer a forte semelhança entre a Língua de Sinais Francesa (LSF) e a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), ainda que, ao longo dos quase dois séculos que nos separam da vinda de Huet para o Brasil, essas duas línguas tenham sofrido transformações e influências diversas.

O Instituto Nacional de Jovens Surdos de Paris, em francês Institut National de Jeunes Sourds, preserva seu lugar de patrimônio histórico dos surdos, mas não ficou parado no tempo. Seu desafio atual é adaptar-se às transformações da educação de surdos, com novas demandas e novas tecnologias. O INJS é aberto para visitas, mediante agendamento, e o acervo da sua biblioteca histórica está disponível para consulta.

Fonte: Arquivo pessoal.





sexta-feira, 7 de agosto de 2015

EM DUPLO RISCO: MULHER E DEFICIENTE

Há exatos 09 anos (07/08/2006) foi sancionada a Lei Maria da Penha. Embora as ações e discussões que derivaram dela não tenham acabado com a violência doméstica contra a mulher no país, elas contribuíram para encorajar a denúncia. Em 2014, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu, em média, mais de 1300 denúncias de violência contra a mulher por dia. Em relação ao ano anterior, houve um aumento de 50% nas denúncias de cárcere privado e de 20% nas denúncias de violência sexual (estupro, assédio e exploração sexual). As denúncias de violência física chegaram a 27.369, correspondendo a 51,68% do total. Nunca é demais lembrar que o número de denúncias está longe de corresponder à totalidade de ocorrências e que a violência física representa apenas um dos tipos de violência cometida contra a mulher.

Fonte: arquivo pessoal
Quando nos voltamos para o universo das mulheres com deficiência, a situação é ainda mais grave. Em Portugal, 50% das mulheres deficientes que participaram de uma pesquisa relataram ter sofrido violência de gênero. No Canadá, em pesquisa realizada em 1989, 40% das mulheres com deficiência que responderam aos questionários afirmaram ter sido vítimas de abuso e 12%, vítimas de estupro. Menos da metade delas registrou queixa. Embora outras pesquisas, tanto nacionais quanto internacionais, ratifiquem essa porcentagem, a necessidade de estudos mais aprofundados é evidente.

Além das formas de violência de gênero perpetradas contra as mulheres em geral, a mulher com deficiência está sujeita também às formas de violência cometidas contra os deficientes, tais como, a imposição de tratamentos médicos intrusivos e não consentidos, por vezes com consequências irreversíveis, ou, pelo contrário, a não garantia de tratamentos e cuidados necessários. A mulher deficiente fica colocada no entrecruzamento perverso de dois preconceitos milenares, encontrando-se numa posição de duplo risco.

Algumas hipóteses tentam explicar essa triste prevalência: as mulheres com deficiência, em geral, são menos escolarizadas; vivem uma situação de maior dependência econômica; têm uma circulação mais restrita nos meios sociais e, portanto, mais dificuldade em encontrar suporte; têm menos condição de acessar os serviços de apoio existentes e, em alguns casos, menos credibilidade diante das autoridades que deveriam protegê-las. Com isso, os agressores, quase sempre pessoas próximas, se encontram em uma posição de maior poder e têm mais certeza de permanecerem impunes por seus crimes. Essas hipóteses, no entanto, não explicam a violência, elas apenas descrevem a situação de maior vulnerabilidade em que se encontra a mulher deficiente. Entender porque as pessoas se aproveitam dessa condição pra praticar atos de violência é bem mais complexo.

A violência é um sintoma da desumanização do outro: aceito como ser humano aquele que reconheço como igual ou como ideal, porque vejo nele as características que admiro em mim ou que desejo ter. Todos os outros são menos humanos ou mesmo não humanos, são objetos, dos quais posso dispor de acordo com meus desejos, humores e medos. Nestes, apenas vejo as partes de mim que não aceito e por isso não os suporto. Parte da violência é fruto dessa objetificação: seja como ato de exercício perverso de poder daquele que se entende como ser humano verso aquele a quem considera objeto, seja como ato de reação daquele que se viu reiteradamente colocado neste lugar.

* Os links inseridos ao longo do texto levam para as fontes de onde foram extraídas as informações usadas.